quinta-feira, novembro 1

INFÂNCIA

I

Meu tio e padrinho correndo da noiva!
Saltos e saltos pela janela do quarto
Fingir de doente arrumado por baixo do lençol para ir par ao samba.
Boêmios de Irajá...

Mulatas lindas entrando
Estátuas de vermelho e branco
Na sala de estar
Eu menina puxando os pompons brancos da roupa de uma delas.
Fascínio! Quero ser assim quando crescer!
Boêmios de Irajá...

Meu tio me fantasiava de vascaína
E levava para passear na estação, na porta do cinema.
Boêmios de Irajá...

Velocípede de acento de madeira
Ovo de Páscoa com bolinhas de chocolate dentro
Único banho na piscina do clube.
Boêmios de Irajá...

Dos filhos de meu tio, dois homens, nenhum ama o carnaval,
Nenhum ama a noite.
Vascaínos por descuido.
O legado foi passado poeticamente
Através de uma presença que se fazia pela alegria de viver,
Encantamento de convívio.
Boêmios de Irajá...
(17.07.2007 – 10h10min)

II

Menininha indo dormi:
– Bença, Mãe!
– Bença, Pai!
– Bença, Dinda!
– Bença Dindo!
– Bença vô...
Mergulho em berço esplêndido!
O siom do mar vinha de dentro da noite,
De dentro de mim...
(17.07.2007)

III

Eu pedia para minha vô me cobrir e rezar
Antes de dormir.
Ela ficava sentada,
Fazendo sombra
E a luz chegava ao meu rosto,
Então, podia ter um banho só do olhar cansado de minha vô.
Que saudades da minha vô!
Que orgulho da minha vô!
Portelense
Chopinho claro ou escuro.
Passeios pela Tijuca!
Confeitaria Colombo!
Velas para as almas!
Coque grisalho...
Reminiscências de uma netinha com mãos de pianista...
(17.07.2007)

IV
– Baia! Baia!
– Oh, minha branca...
– Cê vai no meu aniversário?!
E ela foi de azul brilhante
E me deu alegria.
Corria para ela onde quer que estivesse,
Abraçava, beijava aquela mulher negra, forte, trabalhadeira.
Tanto amor, tanto carinho.
– Mãe, ce vai levar chuchu para Baia também, não vai?
O que aconteceu com Dona Maria?
(17.07.2007 – 10h 34 min)

V

– Cachorrinho lindo!
Meu primo adolescente me deu para segurar e disse que poderia ficar com ele. Pedi ao meu pai se poderia ficar com ele mesmo. Queria derrubar sobre o pequeno baldes e baldes de brincadeiras!
Sai de casa da minha tia com meu pai levando um saco de papel pardo, com o cachorro dentro. Peguei o ônibus, desci e fui correndo para casa levar meu cachorrinho.
Saco vazio... Todos mentiram... Foi minha primeira sensação de perda, minha primeira dor de engano.
A argumentação óbvia e mesmo verdadeira – você tem medo de cachorro! – o coro doméstico repetia. Não justificava, mesmo hoje, o engano. Se não podia, por que a oferta? Se não podia, por que o ilusório? Aprendi que os adultos mentem. Pronto: acabara de morder do fruto proibido.
(17.07.2007 10h 45min)

VI

Hoje, quando vou à Portela
Parte de minha infância vai comigo.
– Olha, vô, eu aqui!
Homenagem em samba e cerveja.
Certeza de que ela seria a mais linda das baianas!
(17.07.2007)


VII

Decididamente minha infância não foi drummondiana...
(17.07.2007)


VIII

Praga de madrinha tenho aos montes.
Todas já caducaram, graças a Deus!

(17. 07.2007)


IX

Biau de sorriso doce e suas histórias sobre a Bahia.
Quando ela voltou para Salvador fiquei cheia de saudade – inaugurava esse sentimento! Minha amiga adolescente não me esqueceu: recebi uma carta, ganhei uma jangadinha na sua volta. E assim foi minha infância e adolescência: povoada de histórias.
O primeiro dia que cheguei em Salvador, anos e anos mais tarde, eram aquelas histórias que lembrava, era o Elevador Lacerda que procura, era com Itapuã e Pelourinho que sonhava. Tudo igual, igual a Salvador da Biau. Descobri pasma que Salvador já existia em mim. Foi como visitar minha amiga, dar a mão a ela como quando criança e perambular pelas subidas e descidas da cidade.
Desde então, voltar a Salvador é voltar a encontrá-la e encontrar uma alegria construída por afeto, só possível de traduzir se comparada a um mergulho nas águas da Lagoa do Abaeté.

Angélica Castilho
Rio de Janeiro, 27 de outubro de 2007.

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